Circuncisão Feminina
07/12/2006 - Uma pequena revolução no Cairo
Teólogos lutam contra a Circuncisão Feminina
Amira El Ahl
No Cairo, foi desencadeada uma pequena revolução: uma conferência de teólogos muçulmanos de alto escalão concordou que a mutilação genital feminina é irreconciliável com o islamismo. A prática dolorosa, e freqüentemente fatal, da circuncisão feminina afeta milhões de mulheres na África. O grito de Fátima é aterrador e angustiante. A garota, que parece ter cerca de oito anos de idade, grita em pânico, no início devido ao medo, e depois por ser incapaz de suportar a dor pela qual está passando. Ela está deitada no chão de uma cabana de pau-a-pique em algum lugar no deserto etíope. O seu corpo se contorce de dor à medida que ela grita, chora e, finalmente, fica deitada choramingando. O seu vestido novo, verde com estampas floridas, está ensopado de sangue. Dois homens e a mãe dela pressionam essa criança delicada contra o solo e abrem as suas perninhas finas. Uma mulher velha se agacha em frente a Fátima, empunhando uma lâmina brilhante e uma grossa agulha de cerzir. Hoje é o dia em que Fátima se transformará em uma mulher. Uma mulher decente. A agulha grossa serve para levantar os lábios da vulva a fim de facilitar o corte destes. A mulher velha coloca a lâmina na posição. Primeiro ela corta os pequenos lábios da vulva e a seguir o clitóris. Há sangue por toda parte. A garota arqueia o corpo pequeno, coberto de suor. A mulher joga freqüentemente um líquido leitoso sobre a ferida para prevenir infecções. A seguir a avó da garota entra na cabana, apalpa a ferida e pede a mulher velha que faça um corte mais profundo. O processo recomeça. Os gritos de Fátima são quase insuportáveis. Se a imagem desta menina passando pela circuncisão feminina é tão difícil de suportar, como é que ela consegue agüentar a dor? Finalmente o trabalho é concluído. A ferida é fechada com espinhos. Apenas uma pequena abertura é deixada. Um pedaço de palha é inserido neste pequeno orifício para impedir que ele se feche. A seguir as pernas de Fátima são amarradas juntas com uma corda para permitir que a ferida cicatrize. Ela ficará de cama, com as pernas amarradas desta forma, durante várias semanas. A mulher velha conclui a sua tarefa bárbara com um tapa nas costas da menina. Agora Fátima é uma mulher.
Cerca de 6.000 mulheres são vítimas da mutilação genital todos os dias. Ou cerca de dois milhões por ano.
A Organização Mundial de Saúde (OMC) calcula que entre 100 e 140 milhões de mulheres em todo o mundo sejam circuncidadas. A maioria das mulheres circuncidadas vive em 28 países da África, bem como na Ásia e no Oriente Médio. Segundo o Fundo das Nações Unidas para a Infância (Unicef), pelo menos 90% das mulheres são circuncidadas em países subdesenvolvidos como Etiópia, Sudão, Djibuti, Somália e Serra Leoa. Por outro lado, quase não se pratica a circuncisão feminina no Iraque, no Irã e na Arábia Saudita. A OMC identifica quatro tipos de mutilação genital:a. Tipo I, ou "clitorectomia": extirpação da pele em volta do clitóris, com ou sem a extração de parte ou de todo o clitóris.b. Tipo II, ou "excisão": remoção de todo o clitóris e de parte ou da totalidade dos pequenos lábios. c. Tipo III, ou "infibulação": remoção de parte ou de toda a genitália externa, e a costura do orifício vaginal, deixando-se apenas uma pequena abertura.d. Tipo IV: várias outras práticas, incluindo perfurações, incisões ou retalhamento do clitóris. Uma em cada três meninas morre como resultado da infibulação, também conhecida como mutilação faraônica. As mulheres são submetidas à circuncisão há milhares de anos, e o costume está profundamente enraizado no pensamento humano. Certas tradições exigem que as mulheres sejam circuncidadas, e muitas vezes é a própria mulher que deseja dar continuidade a esse ritual, em parte como forma de impedir que as meninas tenham desejos sexuais. De fato, uma mulher não circuncidada é considerada sem valor algum no mercado de casamentos em muitos locais por ser tida como "impura" ou "livre". Condenação contundenteEmbora a circuncisão seja muitas vezes defendida com razões supostamente religiosas, não existe justificativa religiosa para essa prática, nem no cristianismo nem no islamismo. A condenação contundente por parte de líderes religiosos e morais é necessária para que essa prática terrível seja abolida. Mas parece existir um movimento em curso - pelo menos se um evento ocorrido no Cairo duas semanas atrás for tomado como um indicador. Tal evento equivaleu a uma pequena revolução. Clérigos e teólogos muçulmanos da Alemanha, da África e do Oriente Médio passaram dois dias discutindo a mutilação genital feminina. O objetivo da conferência foi declarar que essa forma de circuncisão é incompatível com a ética do islamismo como religião global. Foi um alemão que organizou e financiou a conferência. Em 2000, Rüdiger Nehberg, 71, um homem conhecido por aventuras como a travessia do Oceano Atlântico em um barco movido a pedal, criou a Target, uma organização de direitos humanos dedicada a combater a mutilação genital feminina. Desde então, Nehberg, acompanhado da sua companheira de toda a vida, Annette Weber, tem viajado pela África com a sua câmera de vídeo, documentando essa prática inumana, e procurando obter o apoio de lideranças políticas e religiosas à sua causa. Aonde quer que vá, Nehberg diz: "Esse costume só pode ser abolido com a força do islamismo". Ao organizar a conferência, que foi realizada na Universidade Al-Azhar, no Cairo, sob os auspícios do grande mufti egípcio Ali Jumaa, Nehberg chegou um passo mais perto da sua meta. Vários acadêmicos muçulmanos importantes participaram do evento. O ministro egípcio de organizações religiosas de caridade, Mahmud Hamdi Saksuk, condenou a prática, assim como o grande xeque da Universidade Al-Azhar, Mohammed Sayyid Tantawi. Até mesmo o renomado e notório clérigo e jornalista egípcio, Yusuf al-Qaradawi, que goza de grande popularidade no Oriente Médio devido aos comentários que faz na rede de televisão Al Jazira, participou da conferência no Cairo. Qaradawi fez jus à sua reputação como elemento de linha dura ao inicialmente criticar não a mutilação, mas o fato de a conferência ter sido financiada por uma instituição estrangeira. Ele também reclamou do título da conferência, "A Proibição da Violação do Corpo Feminino pela Circuncisão", alegando que este era tendencioso e arrogante. Uma prática proibida pelo islamismoMas depois de muita hesitação, até mesmo Qaradawi concordou que o Alcorão afirma ser proibido mutilar a criação de Deus. "Nós estamos do lado daqueles que proíbem essa prática", declarou ele, acrescentando, entretanto, que os médicos devem proferir a palavra final. Mas as ativistas dos direitos das mulheres não acharam que isso foi suficiente. Mushira Chattab, a embaixadora especial da primeira-dama egípcia e diretora do Conselho Nacional de Infância e Maternidade, pediu aos especialistas em direito que participaram da reunião que assumissem uma postura clara contra a circuncisão feminina. A seguir ela se dirigiu a Qaradawi e disse: "Você não deveria deixar a condenação dessa prática a cargo dos médicos". Todos os médicos presentes à conferência concordaram que não existe justificativa na medicina para a mutilação genital feminina. Heribert Kentenich, médico chefe da clínica de mulheres do Hospital DRK em Berlim disse que "não dá para entender de forma alguma" o fato de 75% dessas circuncisões no Egito serem realizadas por médicos. "Fico horrorizado ao constatar que existem médicos enriquecendo com essa prática", acrescentou Kentenich. O número estimado de casos de circuncisão feminina caiu significativamente - alguns dizem que a queda foi de até 97%, outros que foi de 50% -, mas é impossível obter estatísticas precisas. Ainda que a queda tivesse sido de apenas 50%, isso já representaria cerca de 400 mil meninas por ano. "Conferir um caráter médico à mutilação genital feminina parece tornar essa prática mais aceitável", afirma Kentenich. Dentre as conseqüências diretas da circuncisão feminina estão hemorragias, dores terríveis e uma ansiedade que pode gerar traumas. Além disso, a prática pode ainda provocar infecções do aparelho urinário, do útero, das trompas de falópio e dos ovários. Outras conseqüências como o tétano, gangrena e infecção generalizada podem ser fatais. Além disso, as mulheres que são submetidas à mutilação faraônica experimentam dores durante a menstruação, quando o sangue se acumula na vagina devido ao fato de a abertura ser muito pequena para permitir o fluxo normal. As mulheres mutiladas também correm um risco maior de serem infectadas com o HIV. O ato sexual é doloroso para as mulheres circuncidadas. A fim de consumar o ato, os homens muitas vezes penetram as suas mulheres à força. Aqueles cujos pênis não são capazes de consumar a penetração usam uma faca para aumentar a abertura vaginal. As mulheres circuncidadas podem enfrentar complicações durante a gravidez, e tanto a mãe quanto a criança correm um risco maior de morrerem durante o parto. Não existe nenhuma justificativa religiosa para essa prática. Todas as três principais religiões monoteístas mundiais definem o homem como sendo uma criação perfeita do todo-poderoso, e condenam qualquer dano infligido à criação de Deus. No seu sura 95, verso quatro, o Alcorão afirma: "Nós criamos o homem segundo a nossa mais perfeita imagem". Além disso, o islamismo preconiza que tanto os homens quanto as mulheres devem experimentar a satisfação sexual, e satisfazer a mulher é considerado um dever conjugal do marido - uma tarefa praticamente impossível quando a mulher é circuncidada. Embora os participantes da conferência tenham de forma geral concordado quanto a esses fatos, alguns homens insistiram insistentemente em defender a circuncisão como prática estabelecida. "As nossas mulheres são circuncidadas há milhares de anos, e elas nunca reclamaram", gritou um ancião agitado na platéia. Ele afirmou que a conferência era uma conspiração ocidental, e disse que a exposição de fotos de circuncisões se constitui em um crime. Mas os teólogos e clérigos na platéia declararam que a circuncisão feminina é um costume deplorável, para o qual não existe qualquer fundamento nos textos religiosos. Eles pediram aos parlamentos dos países nos quais essa prática é comum que instituam leis transformando a mutilação genital em um crime. O grande mufti do Egito assinou a resolução no dia seguinte. Ali Jumaa declarou acreditar firmemente que a luta contra esse costume terrível será bem sucedida. Os muçulmanos baseiam grande parte de seus comportamentos nas opiniões legais emitidas pelos líderes religiosos. Para Rüdiger Nehberg, o aventureiro engajado em uma cruzada pelas mulheres, a conferência representou a realização de um sonho.
"Eu agora pretendo imprimir um pequeno livro contendo as recomendações e os comentários dos líderes religiosos, e distribuir quatro milhões de cópias em todo o mundo", disse Nehberg.
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